- dezembro 8, 2022
Evento no Mato Grosso do Sul discute caminhos para a soberania alimentar em territórios indígenas
Entre os dias 17 e 22 de outubro, Marcelino e Maria dos Anjos Apurinã, lideranças da Terra Indígena Caititu (Lábrea/AM), compartilharam sua experiência na implementação de Sistemas Agroflorestais no evento “Mutirão Vivo: escassez ou abundância no tekoha”, realizado pelo Conselho Indigenista Missionário – Cimi em parceria com a Misereor e Aty Guasu Guarani Kaiowa. O evento ocorreu em duas aldeias guarani-kaiowa, no Mato Grosso do Sul, e reuniu representantes de 21 povos indígenas do Brasil, Paraguai e Peru para discutir estratégias e dificuldades na construção da soberania alimentar em territórios indígenas. Também estiveram presentes representantes da embaixada da Alemanha.
Os povos Guarani-Kaiowa, Guarani e Kaiowá são originários da região onde hoje fica o Mato Grosso do Sul, e viveram um processo de remoção forçada de suas terras tradicionais e de concentração em reservas indígenas longe de seus territórios tradicionais. Nas últimas décadas, estes povos vêm reivindicando a demarcação de suas antigas terras, e retomando áreas que hoje estão degradadas pela monocultura de soja, milho, e cana, que prevalecem na região. Nessas retomadas, cercadas por fazendas, os indígenas convivem com o despejo de agrotóxicos nas lavouras vizinhas, que acaba contaminando e até matando os plantios nativos, e traz danos à saúde da comunidade. Além disso, cupins e formigas buscam refúgio dos agrotóxicos nas roças das aldeias, se tornando uma praga com grande poder destrutivo.
Guardiões da biodiversidade
O evento teve como proposta valorizar os conhecimentos e modos de plantio tradicionais indígenas, somando a eles outros conhecimentos e alternativas de cultivo, como as técnicas da agroecologia e os Sistemas Agroflorestais (SAFs), que têm inspiração nas roças tradicionais indígenas. Na primeira aldeia visitada, chamada Guyraroka, no município de Caarapó, ocorreram rodas de conversa sobre a diversidade características dos plantios indígenas, e tecnologias tradicionais para garantir a saúde dos cultivares. “A monocultura nunca foi a realidade indígena. Na roça dos nossos avós e bisavós, não tinha só uma espécie plantada, tinha muita diversidade, e até variedades da mesma espécie”, ressaltou Alzanir Kambeba, que trabalha com os SAFs em seu território no Amazonas.
Essa variedade, lembrou Alzanir, é o que garante a fartura de alimentos saudáveis o ano todo. Para estimular a diversificação dos plantios, cada participante levou sementes para trocar, e foram distribuídas sementes crioulas de milho, feijão, amendoim, frutas e hortaliças. Também foi plantada uma cerca viva com mudas de árvores frutíferas e medicinais, para proteger as roças das comunidades de Guyraroka dos agrotóxicos aplicados nas lavouras dos arredores.
Tanto no plantio, como na troca de sementes, os rezadores guarani e kaiowá entoaram cantos que tem como objetivo proteger as plantas e garantir que elas cresçam fortes e sadias. “Esse é o veneno indígena”, brincou Tito Vilhalva, de 104 anos, principal liderança da aldeia Guyraroka.
Valorizando a comida tradicional
Na segunda aldeia visitada, chamada Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante, o foco foi a alimentação. E comer alimentos plantados nos territórios, afirmaram os indígenas presentes, é um pré-requisito para uma boa condição de saúde. “A gente não se dá conta, mas o desanimo que sentimos, muitas vezes é causado pelo que comemos. Comida industrializada, com aditivos e conservantes, não faz bem para saúde. Precisamos voltar a comer como nossos antepassados, os produtos das nossas roças, sem veneno e fertilizantes. Esses alimentos davam força para eles dançarem doze horas seguidas”, alertou Alzanir. “A terra tem que descansar para plantar de novo. Na monocultura em larga escala, eles precisam usar fertilizantes e agrotóxicos, porque não dão o tempo para terra se recuperar. A terra está enfraquecida, e o alimento produzido nessa terra doente, também adoece a gente” pontuou Eliel Benites, do povo Guarani-Kaiowá.
“Os SAFs são uma boa estratégia para nossa realidade de hoje, de territórios limitados. Antigamente, nossos antepassados circulavam por uma área muito grande, e iam variando as áreas de plantio. Hoje não temos espaço para isso, e precisamos de estratégias para manter o solo sempre forte, fértil e produtivo. Os SAFs oferecem essas respostas”, explicou Marcelino Apurinã. Nestes plantios, são combinadas diferentes espécies nativas alimentares, madeireiras, e florestais, para construir um sistema ecológico saudável. Assim, é possível produzir alimentos e matérias primas, sem desmatar e usar agrotóxicos e fertilizantes.
Dona Maria dos Anjos relatou que os SAFs diminuíram a dependência de sua comunidade da comida comprada em mercados: “Agora nós escolhemos o que vamos comer. Temos muita macaxeira, banana, pupunha, tucumã, ingá, abacaxi”. Os alimentos cultivados nos territórios, em especial em áreas próximas aos centros urbanos, muitas vezes são desvalorizados pelas novas gerações, cujo interesse está voltado aos produtos industrializados dos supermercados. Pensando em evidenciar as potencialidades culinárias dos alimentos cultivados, cada comitiva indígena presente foi convidada a preparar um prato tradicional de seu povo. Assim, formou-se um verdadeiro banquete com muito peixe assado, caldeiradas, mujeca, beiju, tacate de banana da terra e mamão verde cozido.
Seu Marcelino e dona Maria apresentaram alguns produtos de seus SAFs, como as farinhas de mandioca, macaxeira e tapioca, o tucumã, e o colorau. Também levaram mel produzido no território, e óleo de copaíba. “A riqueza para os povos indígenas nunca foi dinheiro, e sim viver bem, na floresta, com fartura de comida. E a gente está nesse caminho” comemorou o cacique Marcelino.
O trabalho com SAFs na TI Caititu começou em 2013, com apoio do Raízes do Purus, projeto patrocinado pela Petrobras e pelo Governo Federal.